ENTREVISTA COM A ATRIZ JEANE DOUCAS
CLIC ESPAÇO: fale um pouco de sua formação, o que faz, um perfil, afinal nem todos a conhecem (principais trabalhos, objetivos, desejos...).
JEANE DOUCAS: sou formada em Engenharia Florestal pela UFV, mas, desde o primeiro ano de graduação eu me envolvi com teatro. Iniciei nos cursos de laboratório de teatro da UFV (que não existem mais há muitos anos, infelizmente) com Júlio Paixão e entrei para um grupo, muito ativo nos anos 80/90, a Cia Philodramática Tertúlias ao Vento. Desde lá não parei mais de fazer teatro e percebi que esta era minha vocação. Terminado o curso de engenharia, decidi me profissionalizar em teatro e fui para BH, estudar no teatro universitário da UFMG. Morei oito anos em BH onde tive uma carreira bastante prolífica, como atriz, professora, produtora e figurinista. Uma das experiências mais marcantes da minha carreira foi ter trabalhado com os diretores Paulo César Bicalho e Papoula Bicalho, em BH. Eles nos apresentaram (aos atores) uma metodologia de trabalho de ator fundamental. Criamos um espetáculo que, para mim, engendrou novos paradigmas do teatro mineiro. Com este trabalho fui eleita melhor atriz de BH em 99. A partir desta experiência, decidi voltar à academia e fui fazer mestrado em teatro na UNIRIO, pesquisando esta metodologia chamada ações psicofísicas, que na verdade foi lançada pelo mestre russo Constantin Stanislavski. Na época da escrita da minha dissertação resolvi voltar prá viçosa, onde meu marido mora e leciona (na UFV). Desde esta época- 2003 - continuo morando aqui. Como viçosa é muito carente, pobre mesmo em arte e cultura, fiquei estes anos transitando entre BH e Viçosa, para trabalhar e alimentar a alma. Também procurei estabelecer trabalho fora do país, tendo estudado e trabalhado na Alemanha, Grécia e, mais recentemente no Japão, através de bolsas. Aqui em Viçosa, cheguei a oferecer algumas oficinas de interpretação e, o último trabalho foi a direção do espetáculo de ‘As Bacantes’, que ganhou o prêmio de teatro Myriam Muniz da Funarte.
C.E.: como foi a idéia de ir ao Japão, o que vc foi fazer lá? Fale do projeto que vc conseguiu que aprovasse para isso.
J.D.: há muito tempo venho “namorando” com a idéia de ir pro Japão e também com o Butoh, que é uma dança contemporânea japonesa. Já havia feito curso de Butoh no festival de inverno de Ouro Preto, com uma bailarina que havia estudado no Japão. Quando morei na Alemanha, em 2005, também fiz um curso intensivo de Butoh com Tadashi Endo e quando morei na Grécia, fiz outro curso com Katsura Kan. Em meu último solo, que estreou em Atenas e foi apresentado aqui em Viçosa, utilizei referências do Butoh. Surgiu então uma oportunidade, através de um edital da Funarte, de residência artística. Entrei em contato com os principais “butoístas” do Japão, que me aceitaram como aluna. Enviei o projeto para a Funarte, o mesmo foi aprovado e, assim fui. Permaneci por lá por dois meses e meio estudando no Kazuoh Ohno Dance Studio e com Natsu Nakagima. O Kazuo Ohno, que morreu ano passado com 103 anos, foi o principal bailarino de Butoh no mundo e seu filho, Yoshito Ohno, é quem comanda o studio agora. O projeto era para eu permanecer por lá por seis meses, tanto para fazer as aulas como para criar e apresentar um solo. Infelizmente, devido às catástrofes que ocorreram por lá, tive que retornar.
C.E.: quais suas impressões sobre a cultura japonesa e como isso contribui em seu trabalho (poderá contribuir de agora em diante no trabalho) e como pessoa?
J.D.: olha, sobre as impressões que tive do Japão e seu povo, poderia escrever um livro, intitulado: Japão: excesso e contenção. É realmente um povo e um país de extremos, de paradoxos em todos os níveis que se possa imaginar. A convivência harmônica entre o ultramoderno e o tradicional, entre o paroxismo do consumismo e uma sociedade com um alto senso do coletivo, enfim, contrastes que percebi desde o nível mais rasteiro até os mais sutis, como por exemplo, entender o que se passa no interior de um japonês somente através do olhar, já que eles não são dados a se expressar como fazemos. De um modo geral, num primeiro contato, o que se percebe é que é um povo muito gentil, amável e solícito e, como sabemos sério e trabalhador. Dentre os países que conheci e morei, o Japão é o que mais me marcou. Com certeza irei incorporar estas experiências em meu próximo trabalho.
C.E.: e a experiência com os problemas ocorridos lá (catástrofe natural)?
J.D.: bem, no momento do grande terremoto, felizmente eu estava em uma cidade distante de Tóquio, dando aula de teatro em uma escola para brasileiros. Nós sentimos os tremores no meio da aula, mas foi relativamente leve, apesar de parecer durar uma eternidade. Foi uma apreensão muito grande, mas por sorte as crianças se mantiveram calmas. À noite, na casa em que estava hospedada, assistimos aos noticiários e ficamos horrorizados com tanta destruição e tragédia. Soubemos que em Tóquio o terremoto tinha sido forte também. Fiquei dois dias a mais do previsto, “presa” nesta cidade, pois não havia trens nem ônibus para Tóquio. Quando voltei prá Tóquio vi que a situação não estava nada bem, fora do normal. Ruas, antes abarrotadas de gente, agora estavam vazias. Nos supermercados, quase tudo havia acabado. Quando cheguei ao meu apartamento encontrei tudo no chão, os móveis fora de lugar, um caos. A partir do primeiro dia de terremoto sentia mais ou menos uns dez tremores por dia, entre fraco e moderado. Um estresse tremendo, já que eles estavam prevendo mais um grande terremoto por aqueles dias. Bem, quando começaram a explodir os reatores, não tive dúvida. Voltei assim que pude, e dei muita sorte de ter tomado a decisão na hora certa, pois no dia seguinte ao meu embarque soube que não havia mais passagens para o Brasil.
C.E.: o que vc pensa em fazer já que teve que retornar mais cedo?
J.D.: meu projeto de residência estava previsto para ser realizado em seis meses. Como eu só cumpri dois meses e meio, tenho que continuar os outros meses em qualquer canto do mundo, já que se trata de edital e a proposta tem que ser cumprida de qualquer jeito. Estou agora pesquisando outros lugares que tem grupos e artistas que praticam e ensinam o Butoh. Na Europa tem muita coisa e em Nova York tem algo também. Mas como eu tive gastos além do previsto (paguei quase o preço de uma passagem inteira para remarcar minha passagem de volta do Japão), pretendo continuar esta residência na América Latina. Há um bailarino em Buenos Aires e um grupo bem interessante no México. Ainda estou em dúvida entre os dois. Devo partir em breve, por causa das datas que tenho que cumprir para o projeto.
C.E.: pensa em voltar ao Japão oportunamente?
J.D.: é um país que tenho muita vontade em retornar. Tem muito ainda a ser visto, a ser descoberto, a se aprender sobre esse país e essa gente. E tem também a experiência com o Butoh, que gostaria sim de poder continuar lá, já que é o local da fonte, é onde estão os melhores bailarinos e professores. É o lugar onde a relação ensino aprendizado se dá por um viéz totalmente diferente do ocidental. Não há a dualidade cartesiana, corpo-mente, como conhecemos no ocidente, e isso é fundamental para qualquer ator-bailarino. É uma grande pena tudo o que aconteceu e está acontecendo com esse povo e, pelo que tenho notícia, vai demorar muitos anos até a situação normalizar. A questão da radioatividade é muito séria e não tem muito que ser feito, já que, uma vez que ela foi liberada para o meio-ambiente, sua dispersão vai depender dos ventos, da chuva, da natureza, enfim. Portanto, acho que vai demorar um bocado para eu poder voltar prá lá. Mas quero sim. E muito.
C.E.: quais seus projetos futuros?
J.D.: já que a montanha não vai à Maomé...em 2009, eu e meu marido decidimos abrir o espaço de arte e cultura Casa da Mãe Jeane, que é em nossa casa mesmo, e tem alguma infra para podermos oferecer pequenos eventos e cursos na área artística. Inauguramos o espaço com o projeto “por dentro do cine”, que foi trazer diretores de cinema para exibirem curtas-metragens e depois bater um papo com o público. Já realizamos oito edições do projeto, que também contou com um curso de interpretação para cinema e duas sessões de longas-metragens com discussões. Além do cine, realizamos o “uma noite com Picasso”, em que trouxemos um professor da UFOP especialista em Picasso que exibiu e discorreu sobre vida e obra do pintor; “Samba com Pipoca”, que foi uma noite com o grupo Beba do Samba e exibição de documentários de samba e o show do “Flor de Batuque”. Um de nossos desafios para a casa é fazer com que os moradores da comunidade Zig-zag, que são nossos vizinhos, participem dos eventos. Todos os eventos do por dentro do cine são gratuitos e os shows e cursos a preços populares. Este é outro desafio: conseguir oferecer eventos de qualidade e gratuitos à população. Somente conseguiremos isto se mais patrocinadores aderirem. E, por sorte temos encontrado alguns apoiadores inteligentes. Mas ainda é pouco. Quase estamos tendo que tirar do bolso para realizar os projetos. Outra pequena vitória for ter conseguido estabelecer parceria com o programa pro cultura, uma novidade lançada pela pró-reitoria de extensão e cultura da UFV, no ano passado. Com esta parceria conseguimos uma bolsista para trabalhar com produção. Não é muito, mas já é um passo.Em 2011 já realizamos o primeiro Por Dentro do Cine em parceria com uma professora do COLUNI que também coordena um projeto do pro cultura. Neste ano temos programado uma oficina literária com Silvana Marchesani, mais duas edições do Por Dentro do Cine, uma oficina de artes plásticas, uma exposição de artes plásticas, uma oficina de teatro, um espetáculo de teatro e alguns shows. Mas para cada evento destes acontecer, temos que matar um leão por dia, ou seja, tentar patrocínio. Eu e meu marido, temos muita vontade de, um dia, ver Viçosa transformada em pólo cultural. Temos todo o potencial para isto. Faltam as vontades políticas e empresariais.
C.E.: quais as dificuldades de trabalhar com teatro/arte/cultura em Viçosa... E as alegrias e compensações?
F.D.: a dificuldade mais óbvia é a falta de incentivo de toda ordem. A administração da cidade, não consegue lidar com seus problemas mais básicos como pavimentação e trânsito, por exemplo. Imagina com relação à cultura? Vejo a cidade com uma cultura flácida, desnutrida, à míngua. Outro problema é a questão de conseguir patrocinador. Patrocínio não é bondade que o empresário faz. É uma troca. Seu nome ganha visibilidade, sua marca cresce no mercado, o que, em última instância, significa dinheiro. O problema é que o empresário só entende que vai ter retorno, se patrocinar mega-eventos, os shows de massa, como vemos tanto proliferar em nossa cidade. Estes mega-eventos viraram um meio de pequenos grupos se darem bem. As comissões de formatura, promotoras destes eventos viraram business, é uma indústria atualmente. Isto não é cultura. Isto não é arte! Mas o patrocinador inteligente percebe que agrega muito mais valor à sua marca e empresa ao patrocinar eventos interessantes, de qualidade e com apelo de novidade. E não adianta falar que eventos, digamos, com um nível mais elevado espantam o público, que o povo não quer ver shows bons, espetáculos bons, exposições. Se você oferece, o povo vai, o povo gosta, o povo quer, o povo entende, o povo é sensível. É preciso que as lideranças e que os governos entendam de uma vez por todas que uma sociedade só é desenvolvida, quando tem a arte e a cultura como um de seus pilares de sustentação. A Universidade, por sua vez, deveria ser o local para a formação integral do ser humano, o que significa oferecer a possibilidade ao estudante deste se desenvolver em todos os aspectos de sua humanidade. A UFV até que tem caminhado no sentido de tentar implementar uma política cultural, mas ainda é pouco. Infelizmente, o que ainda impera de uma forma geral na Universidade, é uma visão muito tecnicista, imediatista, pragmática. O que interessa é o mercado. Seria necessária toda uma reformulação administrativa, reformulação da distribuição orçamentária, desentrave dos trâmites burocráticos, criação de um fundo de cultura, enfim, uma série de reformulações, de maneira a garantir a arte e cultura de verdade dentro e fora das quatro pilastras. Aliás, a primeira reformulação deveria ser derrubar as quatro pilastras com aqueles dizeres positivistas. Isto sim seria um ato revolucionário de um reitor. Mas pelo que vejo, está muito longe disto acontecer. Para além do mérito acadêmico e científico que a UFV tem, temos que parar e pensar: o que a UFV está “fabricando”? Desculpem-me, mas, como falo sempre, muitos dos estudantes que saem da UFV são “peão com diploma”. Não quero ofender nem o “peão”, que respeito muito pelo seu valor, tampouco o estudante. É só uma maneira de dizer, mas que significa muito. Significa que este profissional não leu um bom livro no último ano, não assistiu a um bom filme, não foi a um bom espetáculo de teatro, não viu nenhuma boa exposição, não sabe discutir sobre nada que não seja futebol, novela, big brother ou algo técnico da sua área. É esse realmente o profissional que o mundo quer e precisa? Se sim, amém!
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